sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O bilhete.

Esse (ou este, nunca aprenderei a diferença) conto representa a segunda parte da trilogia das facas. Dedicado aos mani-(in)festantes que encontraram-no por aí.

Numa andança sem propósito entre sons, fumaça, jardins e concreto armado um insignificante pedaço de papel amarelo interrompe de súbito a caminhada. Estava sujo e bastante amassado. Desdobrei-o com tranquilidade e alguns rabiscos pareciam indicar, apesar da caligrafia bastante questionável, um endereço e um telefone. Pouco preocupado em investigar as razões para que esta pequena parte de nada aparecesse em meu caminho, coloquei o papel no bolso, dei a mão esquerda a alguma trama surda, ou mais provável que cega, do acaso, e segui silenciosamente rumo ao local indicado.

O prédio parecia bastante desgastado. Lodo e ferrugem povoavam com paciências os cantos e dobradiças do lugar. Chequei mais uma vez o recorte amarelo e de fato, tratava-se do endereço em questão. Tudo parecia aberto, apesar das portas fingirem que não. Subi por uma estranha escada de piso vermelho e fui recebido, na entrada de um corredor mal iluminado, por um rato ou camundongo, não sei a exata diferença, cujos impacientes olhos de pessoa miúda, ou olhos miúdos de pessoa impaciente fitavam-me sem esperança. Virava continuamente a cabecinha cinzenta para os lados como quem não entende e permanecia curvado como um velho curioso quebrando vez por outra, com seus guinchos loucos de criança, o silêncio que passara em poucos segundos da ternura ao lamento.

Caminhei até o apartamento correspondente ao bilhete, já possuía intimidade suficiente para chamá-lo assim, bilhete. Bati a campainha apenas uma vez, como manda a boa educação, e mal tive de esperar. Fosse um abismo a sala do apartamento, tamanha a fúria com que a porta foi aberta, teria caído no mesmo instante. Ao me recompor do susto, ou quase, levantei a cabeça e numa triste e natural reação mortal diante de um deus, tremi. Nua, alva e dona de infernais olhos negros, ordenou, sem manifestar a menor expressão, que eu entrasse.

Deitei-me, sem convite, no único móvel do cômodo. Em largos e leves movimentos ela some pelo lado esquerdo por uma antiga porta de metal. Em poucos instantes aparece coberta por um manto claro, portando uma faca curta de cabo de marfim. Fuço os bolsos de minha velha calça de brim em busca do bilhete e não o encontro. Enquanto ela se aproxima, me viro, olho o relógio acima da cama e percebo que está parado. Irremediavelmente parado.

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