Novamente Júlio tragava os vapores memoriais da vida insone. O remexer-se vazio, o fastio dos panos inquietos da cama vestida, e o ardil da invenção onírica desperta. Paciência, não estás a ler uma manual de psicologia do sono, pelo contrário, a "invenção onírica desperta" é um artifício vulgar dos aspirantes ao dormir. Após horas de nauseantes tentativas, que ganham esse nome catecrético por não haver melhor substituto (pois dormir não é algo que se tenta), o sujeito começa a associar elementos oníricos que lhe são familiares e constrói anarrativas até se dar conta de que aquilo não é um sonho. Júlio, entretanto, apenas revivia tais noites, numa que o mantinha em vigília por outros meios. Era a semana do amor felino e o nosso herói, desinformado do evento, intentava desesperado um desmaio contra o travesseiro, enquanto os animais se refestelavam numa comunhão extática, que já contava seu centésimo minuto de ápice.
Tal culto lancinante, confundia o grande Júlio, que não sabia se praguejava a Ártemis ou a Baco, decidindo por fim invocar Marte, ao tomar um cabo de vassoura e com a serenidade dum verdugo atravessar o quintal em busca dos querelantes. Antes, porém, Delfos deveria dar-lhe a benção:
-Amor, vou estraçalhar a cabeça desses gatos.
-Vire-se e durma, Júlio.
Ao tergiversar, a silhueta de sua mulher imanava a perfeição espontânea daqueles que de tão tomados pela fadiga, parecem no sono se acoitar lascivamente: sua mão caia-lhe pelos quadris, suas pernas se dobravam em triângulos sem base e seu rosto, banhado da fealdade própria das coisas desacordadas, emitia soluços de um alívio repousante. Como poderia creditá-la, se com tanta gulodice ela se fartava do que ele implorava? Tomou-se, então, a si por oráculo e vaticinou, para as costas da adormecida:
-Vou matar os bichanos.
Contenha sua valoração descabida, se pensas tu que o nosso Odisseu é demasiado cruel em suas intenções. Tentou ele espantar a alimária embriagada da frente de seus portões por diversas vezes: jogou água, meteu-lhes a mão e até mesmo esperneou estridentemente, como se tentasse tomar parte na orgia, defronte os representantes da raça maligna. Eles, todavia, amontoavam-se em tal número (e em tal êxtase) em cima dum muro, que se fazia impossível a um homem só assustá-los todos. Júlio, nosso césar, abriu a porta de sua sala, após o quintal, que o permitia ver, através do portão vazado, a celebração felina e pôs-se a pensar com a vassoura na mão, qual cetro real. A manhã já imiscuía tons claros no azul noturno do firmamento e suas esperanças de sono já eram depositadas no próximo dia, pensando, como os insones normalmente o fazem, que com uma noite em vigília acumulada, dormiria na próxima como uma criança.
Logo foi acordado pela mulher, que o lembrava das obrigações laborais. Despertou e, sem desfrutar de desjejum algum, desesperado desabriu a porta e foi verificar se caíra algum gato em seu artifício. Caminhou para o portão, abriu-o. Atravessou a calçada, em frente à sua morada, e chegou ao muro-telhado que servira de salão para os bichanos na noite anterior. Avistou que o prato que ali colocara estava vazio e, a seu lado, havia um pacote de panos. Não havia gato algum tombado, então resolveu remexer aquele pacote que não estava por lá da última vez. Percebeu que era gente: uma criança de pele ocre, cabelos lisos desgranhados e queimados de sol, com a indumentária encardida e um cobertor caído ao lado. Parecia desacordada. Júlio a tocou e percebeu que os panos não estancaram o frio, pois a criança estava gelada. Assustado, pegou o prato e voltou pra casa.
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