sábado, 17 de outubro de 2009

Cats - Luan Caeté de Araújo

Observação preliminar: Ilustres companheiros, após muito me entreter com as postagens do blog, resolvi colocar algo. Aqui está uma coisinha que eu fiz hoje, um continho humilde, com pretensões cômicas, cuspido após injenções vontrierianas de adrenalina. Comentem!

Cats



Novamente Júlio tragava os vapores memoriais da vida insone. O remexer-se vazio, o fastio dos panos inquietos da cama vestida, e o ardil da invenção onírica desperta. Paciência, não estás a ler uma manual de psicologia do sono, pelo contrário, a "invenção onírica desperta" é um artifício vulgar dos aspirantes ao dormir. Após horas de nauseantes tentativas, que ganham esse nome catecrético por não haver melhor substituto (pois dormir não é algo que se tenta), o sujeito começa a associar elementos oníricos que lhe são familiares e constrói anarrativas até se dar conta de que aquilo não é um sonho. Júlio, entretanto, apenas revivia tais noites, numa que o mantinha em vigília por outros meios. Era a semana do amor felino e o nosso herói, desinformado do evento, intentava desesperado um desmaio contra o travesseiro, enquanto os animais se refestelavam numa comunhão extática, que já contava seu centésimo minuto de ápice.

Tal culto lancinante, confundia o grande Júlio, que não sabia se praguejava a Ártemis ou a Baco, decidindo por fim invocar Marte, ao tomar um cabo de vassoura e com a serenidade dum verdugo atravessar o quintal em busca dos querelantes. Antes, porém, Delfos deveria dar-lhe a benção:

-Amor, vou estraçalhar a cabeça desses gatos.

-Vire-se e durma, Júlio.

Ao tergiversar, a silhueta de sua mulher imanava a perfeição espontânea daqueles que de tão tomados pela fadiga, parecem no sono se acoitar lascivamente: sua mão caia-lhe pelos quadris, suas pernas se dobravam em triângulos sem base e seu rosto, banhado da fealdade própria das coisas desacordadas, emitia soluços de um alívio repousante. Como poderia creditá-la, se com tanta gulodice ela se fartava do que ele implorava? Tomou-se, então, a si por oráculo e vaticinou, para as costas da adormecida:

-Vou matar os bichanos.

Contenha sua valoração descabida, se pensas tu que o nosso Odisseu é demasiado cruel em suas intenções. Tentou ele espantar a alimária embriagada da frente de seus portões por diversas vezes: jogou água, meteu-lhes a mão e até mesmo esperneou estridentemente, como se tentasse tomar parte na orgia, defronte os representantes da raça maligna. Eles, todavia, amontoavam-se em tal número (e em tal êxtase) em cima dum muro, que se fazia impossível a um homem só assustá-los todos. Júlio, nosso césar, abriu a porta de sua sala, após o quintal, que o permitia ver, através do portão vazado, a celebração felina e pôs-se a pensar com a vassoura na mão, qual cetro real. A manhã já imiscuía tons claros no azul noturno do firmamento e suas esperanças de sono já eram depositadas no próximo dia, pensando, como os insones normalmente o fazem, que com uma noite em vigília acumulada, dormiria na próxima como uma criança.

O espírito de vendeta, no entanto, fincava suas entranhas e seus olhos assustados, as poucas roupas amassadas, mais o respirar sibilante, pintavam um quadro assustador para esse quase-Tito-de-Shakespeare. Julius Andronicus, o cruel vingador, é agora seu nome! Traçou, pelas exíguas vielas criativas de seu rude tutano, um plano (falível, porém impiedoso): encheria um prato com leite, pois é disso que os gatos gostam, mais uma generosa dose de um veneno de ratos que tinha na dispensa. Ora, cuspiu nosso deus num arroubo filosófico, animais de rua consomem qualquer coisa, não resistirão o leite. Já imaginava uma miríade de defuntos felinos em torno do prato. Encheu, então, o prato, dosou o veneno, e foi até o muro-telhado, lócus que permanecia em festa, com o fundo sonoro dos miados-gemidos que inviabilizaram a noite de tal grande homem. Lá colocou, regozijante, sua armadilha, a que os gatos não prestaram assunto. Voltou à sua sala e, da janela, ficou a observar se algum dos gatos se tentava pelo prato. De tanto esperar, acabou por dormir no sofá.


Logo foi acordado pela mulher, que o lembrava das obrigações laborais. Despertou e, sem desfrutar de desjejum algum, desesperado desabriu a porta e foi verificar se caíra algum gato em seu artifício. Caminhou para o portão, abriu-o. Atravessou a calçada, em frente à sua morada, e chegou ao muro-telhado que servira de salão para os bichanos na noite anterior. Avistou que o prato que ali colocara estava vazio e, a seu lado, havia um pacote de panos. Não havia gato algum tombado, então resolveu remexer aquele pacote que não estava por lá da última vez. Percebeu que era gente: uma criança de pele ocre, cabelos lisos desgranhados e queimados de sol, com a indumentária encardida e um cobertor caído ao lado. Parecia desacordada. Júlio a tocou e percebeu que os panos não estancaram o frio, pois a criança estava gelada. Assustado, pegou o prato e voltou pra casa.

Luan Caeté de Araújo

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