terça-feira, 6 de outubro de 2009

A Matéria

Numa terça-feira ensolarada sob o céu aberto e incoerente das idéias fora de hora e questão, decidi que era um verdadeiro gênio do bilhar. Sem entender a razão pela qual meu espírito fora tomado por esse devaneio travestido de certeza, peguei meu velho casaco de lã e rumei para o botequim mais próximo na ambição de materializar o sentimento que explodia em meu estômago e se espalhava por minhas entranhas como a merda que vem e não pode ser evitada.

A mesa estava lá. Assim como uma decadente platéia que naturalmente fazia parte do cenário de glória que montei em meus ambiciosos pensamentos. Imaginei como comparação que, se Crusoé realizasse uma nova decoração com incríveis trançados de palha para sua cabana, mesmo se considerarmos o feito como um real, porém fugaz, instante de vitória sobre o tédio, sua obra nada valeria se não fosse chancelada pelo sorriso selvagem e talvez constrangido de Sexta-feira. De que serve o êxito, pensei, sem que sejamos instantaneamente aprovados por outros, mesmo que estes “outros” sejam uma massa sem forma ou meia dúzia de bêbados contendo com a maravilhosa dose matinal o indisfarçável tremor das mãos.

Segui com passos decididos em direção ao balcão, pedi três fichas e desafiei em voz firme os presentes a duelarem numa honrada partida de bilhar. O chamado foi recebido num misto de preguiça e desinteresse por parte dos colegas de recinto. Após alguns minutos de silêncio e algumas trocas de olhares entre os freqüentadores que eu supunha habituais, um senhor, com a aparência cansada e pouco amistosa, sacou o taco preferido pendurado no suporte da parede, catou um pequeno resto de giz azul que descansava na borda da mesa e pôs-se a passá-lo no taco, deslizou o objeto cuidadosamente pelos lugares onde a mão passaria e como de costume, na ponta, detalhe técnico cuja funcionalidade jamais entendi.

A partida começou. Meu adversário, felizmente, deu a saída sem encaçapar nenhuma bola. Chegada minha vez, como um deus dos esportes boêmios, matei bola após bola em jogadas perfeitas para espanto de minha antes modorrenta platéia, que então passara a observar cada lance nos mínimos detalhes e a tecer comentários oscilantes entre o ceticismo e o mais exagerado entusiasmo. O próprio dono do bar, talvez o mais antipático dos presentes, arregalava os olhos e balançava a cabeça confusa e simultaneamente num tom de aprovação e de quem não acredita no que vê, a cada lance genial que partia de minhas mãos.

Como vento, a notícia se espalhou. Já durante a tarde, os melhores sinuqueiros da região foram até o bar, na tentativa de vencer “o homem que não perdia nunca” e como era de se esperar, foram humilhados como moscas. Minhas jogadas pareciam ser alimentadas pela confiança crescente que ardia em mim e pelo espanto quase adulador da platéia, que assim como os desafiantes, não parava de surgir em maior número. Passei, naquele momento, a não conseguir errar. Em certos instantes desejei o erro com toda a sinceridade, mas este simplesmente abandonara-me. Quando a noite chegou, não havia em meu corpo o menor sinal de cansaço.

No meio da segunda partida de uma melhor de três, com um sujeito que mal me lembro das feições, um fato absurdo subitamente acontece. De início, não percebi o que estava se passando, visto que, com os pés firmemente apoiados, me preparava para mais um lance. Realizada a jogada, tentei mover o pé esquerdo, mas este simplesmente se recusou. Tinha sido dragado pelo chão.

Impossível descrever o gélido arrepio que percorreu meu corpo ao ver meu outro pé, fundir-se, assim como o anterior, à superfície do bar. De maneira completamente inexplicável e indolor, a cerâmica, o concreto, o couro de meu sapato, meus ossos e a carne do meu pé passaram a integrar uma só massa sem forma, sem razão.

Não pretendo me estender na narração das óbvias conseqüências que esse insólito acontecimento teve em minha vida, nem na repercussão instantânea nos mais variados meios de comunicação. Pessoas de todas as partes queriam ver o homem unido ao chão do bar. Perguntas estúpidas eram feitas por jornalistas de todas as partes, entre elas, a mais estapafúrdia era repetida à exaustão por jovens engravatados de microfone em riste: “o que você fará de agora em diante?” Era mais que óbvio que não faria simplesmente nada. Humildemente esperaria a morte.

O dono do bar e a comunidade concordaram em garantir minha alimentação e a me ajudar no que diz respeito à higiene e à devida e digna execução das naturais necessidades do corpo humano. A posição em que me encontrava, dificultava sobremaneira um sono tranqüilo, dormia em pé, com o tronco escorado na mesa.

Viver tornara-se insuportável, sobretudo quando o bar era fechado, quando as luzes eram apagadas e a velha porta de aço rangia com dificuldade até encontrar o trinco e o cadeado. Restava-me o breu e quase sempre um copo de cachaça, de plástico, pois o dono do bar sabia dos meus planos de cortar a garganta com o primeiro material adequado que aparecesse.

A prática da sinuca e o doce planejamento de uma morte rápida e quase sem dor, persistiam em mim como os últimos fios de esperança, enfim, como as últimas razões para permanecer. Ao acordar durante certa madrugada, com o barulho estridente dos pneus de um carro que passava, percebi que meu medo acerca da possibilidade de uma desgraça ainda maior abater-se sobre mim, transformara-se em realidade. Meus dois braços e minha testa uniram-se ao corpo da mesa de bilhar. Tornei-me definitivamente uma coisa-gente.

Hoje, acredito estar em meus dias finais. Permaneço firme em minha greve de fome e definho a cada dia enquanto conto a qualquer um que passa, a história de minha vida exatamente do ponto em que aqui iniciei. Pesa sobre meu espírito, mesmo com o conforto da morte iminente, a dor constante de sequer poder desfrutar dos últimos olhares mesmo que de pena, de nojo, de indiferença dos que passam. Resta-me a triste e solitária visão do vazio de minhas idéias quando fecho os olhos, e o deboche frio e inalterável do pano verde, quando reúno coragem e num ridículo gesto infantil, os abro.

Saulo Nepomuceno

Um comentário:

  1. Em linhas gerais, achei excelente. A trama é ótima, perfeita para um conto, um achado mesmo! O estilo me pareceu irregular em certos momentos: no momento em que o personagem narra suas percepções internas há uma escrita mais própria, identitária, um estilo propriamente dito (que se aproxima criativamente do conto russo); quando narra os eventos, em alguns momentos, esse estilo é trocado por algo mais lacônico (mais realista-francês). Essa variação é normal em contos e não acho que deva ser evitada, mas percebo que as vezes através de algumas palavras de apoio (adjetivos, advérbios), os grandes autores conseguem manter em cada frase sua identidade literária. Enfim, essa é uma idéia em que tenho pensado (pois também tenho essa "irregularidade estilística" em meus textos), que estou comungando, não uma crítica, pois as maneiras pelas quais seu estilo oscila são ambas boa escrita (e também pode-se pensar em oscilações propositais com o fim de desvelar a trama de um modo específico).

    De qualquer modo, o conto é digno da Rússia no estilo e da Tchecoslováquia na trama.

    Luan

    ResponderExcluir